terça-feira, 27 de setembro de 2016

Práxis de uma defesa constante

No final de agosto, durante um curso no trabalho, um colega, após ser apresentado ao meu blog, me perguntou em tom bastante jocoso o porquê de eu ser tão séria nos meus textos. Ele também questionou o nome do blog e o fato de eu não incluir fotos minhas de biquíni, podendo, por conta disso, trocar o nome dele para Práxis de uma moça sexy.

Mulheres ao redor soltaram risadinhas e, quando argumentei de maneira defensiva, algumas me disseram para atenuar a minha reação, pois se tratava apenas de uma brincadeira do colega. Até que ponto um machismo encoberto de falso humor deve ser encarado simplesmente como uma jocosidade? Sobretudo quando o comentário demonstra total falta de respeito com o lado intelectualizado da mulher.

Meu cérebro sempre tendeu a ser muito mais criativo e crítico do que os da maioria de minhas colegas. Isso faz de mim um ser mais evoluído e consequentemente um ser esnobe e prepotente? Ao menos é essa a questão implícita do macho-alfa quando me leva a acreditar que devo expor minha carne ao invés do meu intelecto. Para quê pensar quando se é mulher, não é? Afinal, dá uma sensação de empoderamento e isso é necessariamente ruim, ao menos quando se nasce com útero e ovários.

Essa práxis constante de ser doutrinada a pensar menos e se exibir mais é não apenas um embrulhar de estômago mas um câncer social que se espalha e se enraíza mais profundamente, mesmo em uma contemporaneidade avassaladora em termos científicos e tecnológicos. A mim é paradoxal perceber uma constante evolução técnica e um paralelo e crescente retrocesso social. E ninguém precisa ser um Bolsonaro (símbolo-mor brasileiro da representação do que há de pior na luta contra o ser feminino e o ser humano) para ser considerado um machista inconveniente (ok, há redundância no adjetivo, mas a ênfase se faz necessária).

Uma sociedade retrógrada não se faz com vestimentas pesadas, uso de bastões de madeira ou vivência em cavernas. Ela acontece justamente com a adesão de valores primitivos nivelados à bestialidade. Alguns dos comentários a seguir foram proferidos por homens e, sobretudo, mulheres em diferentes situações de minha vida, direcionados ou não a mim.

"E aí, já casou? Tem filhos?". "Você tem que arrumar alguém para casar logo, porque com 30 anos a história começa a mudar, viu?" "Você é bonita, não deveria ter dificuldade para arranjar alguém". "Tão nova e tão séria, você não deveria ser assim." "Você é muito corajosa de viajar sozinha e de morar só." "Querida, foi você que fez o suco? Está uma delícia. Que mais você sabe fazer?" "Não seja tão agressiva, homens não gostam de mulheres assim (após se pronunciar politicamente em uma conversa)." "Você tem 30 anos? Pretende ter filhos quando? Porque sabe, né? Os óvulos..." "Essas mulheres feministas são umas frígidas machonas." "Você tem que se arrumar mais, homens não gostam de mulheres que não se cuidam." "Graças a Deus você conseguiu alguém, agora vê se não faz nada de errado, hein? Porque você sabe como está difícil arranjar homem hoje em dia." "Hoje fiz almoço de novo, foi uma manhã bem puxada, mas meu marido só gosta de comida fresquinha. Mas quem não gosta, né?" "Você gosta de cozinhar pra você mesma? Como assim? Cozinhar é sempre melhor a dois, com um parceiro"... e tantas outras conversas fiadas que um ser feminino escuta ao longo de sua vida.

Um(a) machista comum, não do tipo extremista, é aquele ou aquela que acrescenta a conjunção "mas" logo após dizer que apoia as mulheres. "Sou a favor da causa feminista, mas tem mulher que é difícil demais." "Sou contra a violência doméstica, mas tem mulher que pede para apanhar." "Não sou machista, mas já ouviu a nova piada da loira burra?".

Esse cenário dói. Na alma, no coração, na espinha dorsal. Quem sustenta comentários a priori defensivos incorporados de "mas" declara-se incapaz de qualquer raciocínio argumentativo. Quem apoia não diz "mas". Quem apoia faz, é, age. Não dispara flechas enquanto sorri em tom de amarelo.

Ser mulher é mais do que vestir uma calcinha, pôr um sutiã e escolher o estilo de penteado do dia. É sair de casa diariamente, ou ligar o computador, com um mínimo de preparação para ser alvo de piadas, comentários machistas ou cobranças sociais. Além do constante medo de ser estuprada na rua, levar cantadas grosseiras (que geralmente nos comparam a comidas) e com isso sentir-se intimidada, ou ser ameaçada na internet (como nos casos de Letícia Sabatella e Joanna Maranhão) e ter que escutar de "autoridades", como o chefe de Estado pernambucano (leia aqui), que a culpa por tudo isso é da mulher.

Por essas razões, medos, embates e questionamentos frívolos e arcaicos é que seguirei sempre defendendo que ser mulher é como ser defensora pública em causa própria, 24 horas, enquanto sobrar ar nos pulmões. A labuta é pesada e o reconhecimento social praticamente não existe. Porém, o provento suado chega com rendimentos tímidos mas necessários para que o ser mulher não chegue a entrar numa lista de espécie em extinção, com direito a fotos em pôsters dos aeroportos.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Dor do ontem, medo do hoje

Ontem chorei copiosamente por conta de uma dor de cabeça tão forte que não me deixava enxergar e pisar direito. Hoje de manhã, encontrei quatro fios de cabelo branco em meio ao meu vasto volume (e alguns brotando na franja).

Ontem tive medo de participar de uma estatística que apenas aumenta, a de pessoas jovens que sofrem um Acidente Vascular Cerebral. Hoje receio pela vida com a qual estou lidando diariamente. A cultura do medo encravada no peito me faz refletir: que bulhufas estou fazendo da minha vida? Ou além, o que diabos estamos fazendo das nossas brasileiras vidas?

Pago regularmente minhas contas, sou uma cidadã extremamente responsável em termos pessoais e profissionais, respeito o próximo e quem está longe (piada leve apenas para não perder a veia sarcástica), desejo o melhor dos mundos aos que me fizeram algum mal, planejo sonhos, mas me vejo em um redemoinho interminável de dores de cabeça fortes o suficiente para tirar meu equilíbrio e meu chão.

Não, não estou bem. Admito isso a mim mesma. Não quero ser mais uma a encobrir a verdade interna. Não gosto dos rumos do meu país (por mais que eu queria o tempo todo justificá-lo com frases do tipo "eu avisei" ou, pior, "bem feito"). Não gosto de trabalhar como chefe substituta justificando o enxugar de gelo diário (cuja geleira só faz aumentar) pelo pouco dinheiro a mais que receberei no final do mês.

Não gosto de mentir para mim mesma ao dizer que a melhor saída para o estresse semanal é imergir no Netflix. Não gosto de ver minha família toda se digladiando reiteradamente por conta de orgulhos feridos. Não gosto de fingir diplomacia quando alguém machuca propositadamente minha opinião. E não gosto de me sentir cada vez mais afastada da minha melhor versão, aquela da moça colorida de otimismo.

Eu não vou também justificar a minha fé ou a falta dela. Não quero usar Deus como ópio. E critico honestamente quem o faz. Respeito-os, porém não compactuo com a ideia. O meu Deus, já há algum tempo, vem sendo a música. Para chorar, sonhar, refletir e acreditar. Egoísmo de minha parte? Não acredito. Se temos o direito ao livre arbítrio por que não desfrutá-lo? Afinal, prefiro refutar-me da ideia de ter prazer real numa barra de chocolate belga (até porque cacau não combina com dor de cabeça) para aliviar uma sensação de "pagar pecados pregressos".

O agora me faz remeter ao tempo da aposentadoria. Quando tiver tempo livre para viajar à vontade, viver para a música, morar na Europa (um sonho antigo), sentir a respiração menos apressada, sorrir menos para a tela do computador e mais para pessoas, desconhecer o uso recorrente da palavra medo e voltar a querer levantar da cama cedo sem o resto da energia do dia anterior ter se esvaído (recarregada menos com a visão de um distante futuro e mais com o presente, o agora).

Nos últimos meses, minhas visitas aos médicos se tornaram frequentes, bem como as licenças médicas. E isso seriamente me preocupa. Estou cansada de caçar desculpas externas quando claramente a medicação não está na farmácia. Meu ego precisa desse anti-inflamatório emocional, mesmo que tenha consequências para outros órgãos (como usualmente as tem). Às vezes é preciso provocar algo em benefício do todo. Do meu todo. Para que a dor do ontem não se torne o medo do hoje.

Trilha sonora do momento: Long nights (Eddie Vedder), da impactante história  real de Chris MacCadless (filme biográfico: Na Natureza Selvagem). Para tradução da letra: https://www.letras.mus.br/vedder-eddie/1095185/traducao.html

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Animais racionais


O que difere o homem dos outros seres vivos? Nossa capacidade de organização social? Nossas casas e carros? Nossas redes sociais e smartphones? Sabemos que tudo isso se resume em uma só diferença que aprendemos desde os tempos de escola: a capacidade de raciocinar. Por isso é que somos considerados seres racionais, não é? Não entrarei no pormenor da inteligência, pois todos os seres vivos, irracionais ou nós, possuem tal capacidade, sendo compreendida de diversas maneiras.

Meu ponto, neste momento, é questionar a tal diferença. Se provamos, científica e empiricamente, a singularidade da razão humana por que insistimos em negá-la? Vivemos num mundo doente, como nos avisou Renato Russo. E a mais devastadora doença atual, em meu singelo ponto de vista, não se trata da epidemia do zika vírus, chikungunya ou dengue. Não. Ouso dizer que o desprezo pelo raciocínio é a nossa pior praga. Algo no nível da peste bubônica que devastou a Europa durante a Idade Média. Só que o estrago da peste atual parece bem pior em termos prospectivos.

Em qualquer cenário podemos tirar a prova disso. Cito-lhes dois de diversos exemplos recentes: um político e um musical. A respeito do primeiro ponto não exporei o que acredito ser o melhor viés. Vejo-me numa categoria reduzida em termos quantitativos. Seja em nível municipal ou federal. Sou diariamente pressionada a acreditar que não devo ter ponto de vista. Devo assimilar argumentos vomitados diariamente nos meios de comunicação de massa e simplesmente aceitar a realidade de argumentos que me fazem remeter aos capítulos dos livros de História que falavam sobre a ascensão dos Regimes Nazista e Fascista. 

Sou mulher, hétero, branca, classe média e de esquerda. Meu posicionamento político não se baseia em livros ou em um padrão hereditário, mas em um ser social mais democrático. Mais humano. Não partidário. Isso não significa que não divirjo dos meus pares; um pequeno grupo, mas (bravamente) resistente. Sou ser humana. Descartes já nos esclareceu a lógica: "Penso, logo existo". E pretendo seguir existindo e usando meus neurônios por bastante tempo.

Sobre o exemplo musical acontece a mesma estratégia adversária do questionamento em discordar. Como assim não gosto de música sertaneja, apenas tolero-a? Como assim não canto MPB, se é a minha cara? Como assim não canto o que as pessoas querem, apenas o que gosto? Como assim tenho o direito de achar algo cafona? 

É possível ser livre em tempos de ditadura do pensamento? 

Todas as provas de uma vida melhor estão aí para serem compradas a um preço razoável: apenas suaves prestações em negar ser humana. Nego a minha vontade de questionar e de buscar uma visão diferente do habitual (como seria o inabitual?) e recebo a proteção contra olhares nervosos, bocas inflamadas com vocabulário replicado de redes sociais e contra uma sensação de estranheza social. Melhor aceitar a bela oferta, não? Ser feliz em troca de ser uma ausente racional.

Esse tópico não é novo neste blog. Já o abordei relembrando um princípio da lógica chamado "ad populum". Funciona como uma daquelas propagandas da Ricardo Eletro ou das Casas Bahia. Traduzindo: todos estão indo para lá, então devo ir também. Todos pensam assim, então devo fazer o mesmo. Afinal de contas, não é gentil para com os outros ser uma rejeitada social. 

Ser gentil com os outros. Não magoá-los. Ser aceita. 

O medo da segregação nos aflige, não é? Sentimos a necessidade instintiva em pertencer a um grupo. É mais fácil rir em conjunto, ter ombros amigos, tapinhas nas costas e mais curtidas garantidas no Facebook. 

A minha sensação constante, e nauseante, é de que não basta sermos um ser sociável em constância. Temos que aceitar e reproduzir padrões. Estéticos, políticos, musicais, comportamentais, emocionais. E se não o fizermos estaremos condenados ao exílio da sociedade brasileira. A sentença é transitada em julgado sem qualquer direito à defesa, com base nos princípios difundidos pela sociedade de seres felizes em ser replicantes. 

Doze Homens e Uma Sentença (versão de 1997). Um filme que mostra valer a pena pensar fora do que é "lógico".

Sinto desapontar-lhes (quer dizer, já senti, mas há algum tempo não o sinto mais)... Prefiro a liberdade do questionamento à fé cega em temer a reprovação alheia. Com isso, não me isento do que já cometi, cometo ou cometerei em relação às escolhas de outras pessoas. Sou humana, afinal. Apenas sou um entre os 12 que não acusariam, de pronto, o jovem latino no extraordinário e brilhante filme "12 Homens e uma Sentença (Twelve Angry Men)". Sou o personagem de Jack Lemon, na versão de 1997 (a melhor, para mim), que, a meu ver, representa muito bem a ideia da Filosofia e seu poder em nos lembrar de ser humanos, de questionar, de raciocinar.

Não gosto de absolutos. Nem da palavra, nem do conceito. Incomoda a garganta e impõe limitação à mente. Aprisiona. E de prisões o mundo real já está cheio. Não preciso me encarcerar em uma mental. Precisamos de mais liberdade de raciocínio. Isso não significa sair por aí pregando verdades particulares. Apenas, reconhecer-se e ser, livremente, um animal racional.

Teatro dos Vampiros (Legião Urbana). Música, para mim, que liberta.