domingo, 10 de dezembro de 2017

Pesos e medidas

Fundação Gilberto Freyre, em Recife (maio/2017)

William Shakespeare, uma ótima e conhecida (talvez bem batida, porém contextualizada neste caso) referência em citações, disse em sua peça Medida por Medida que "nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o que, com frequência, poderíamos ganhar, por simples medo de arriscar". Ousaria acrescentar uma livre interpretação ao escritor inglês: a de que a senhora dúvida não pode ser encarada apenas com o viés do medo. Caso contrário, não teríamos sobrevivido a anos de guerras, fomes, pestes, catástrofes, doenças e pragas. Ela esteve lá, presente em todos os críticos momentos. O simples desejo do "e se" certamente nos salvou de muito mais do que inundações, tornados, dores de cabeça e, até, de vidas solitárias.

Há uns quatro meses, enquanto elaborava em minha mente as primeiras ideias sobre um novo texto para o presente blog, cheguei à seguinte conclusão: é a certeza da dúvida que me faz escrever. Vista sob diversos ângulos, a dúvida se torna inimiga de muitos pela intensidade da relação com o seu usuário. Ela não demanda um tipo de amizade que se carrega o tempo todo, numa parceria fiel e, por vezes, acomodada. É daquelas cujo encontro tem que ser pontual, quando a situação for oportuna e exigir mais do que um espírito ilusório de liberdade. Em resumo, a dúvida existe, tem que existir. Entretanto, não deve ser usada além do necessário, sob o risco de se tornar um medicamento cujo efeito, depois de uma ingestão constante e exagerada, não funciona no organismo.

Escudeiro fiel da dúvida, o medo estará pronto ao mais leve sopro da ocasião. Ele não precisa estar a postos, mas é um sentinela obediente a quem quiser chamá-lo. Acompanha cada passo, cada respiração, cada gota de tristeza, angústia, raiva ou desespero da companhia que o convoca. Injustamente, é tratado com desonra pela maioria das pessoas, sobretudo por aquelas que mais paradoxalmente receiam aproximar-se dele. Elas sabem que o medo não morde, mas deixa marcas cujo tempo, senhor de todas as histórias, pode não conseguir cicatrizar. Sua presença, logo, é das mais ojerizadas.

Estar alerta é significar-se em um contexto, dar voz a roteiros racionalizados, por vezes escondidos entre as pastas empoeiradas do armário interior. Viver em estado de alerta é perigosamente desconectar-se do senso de realidade e permitir-se, ou melhor, obrigar-se a se enclausurar em um mundo paralelo de emoções arriscadas e insanas, as quais muito pouco refletem o que de fato acontece ao redor do contexto imaginado. A redoma é de vidro fino. O martelo ao lado muitas vezes não é visualizado por conta do conforto causado pela autocomiseração. A esta, clamo redobrada atenção, pois que em tons de egoísmo lírico se disfarça de humildade mórbida. 

Malfadado é o caminho daquele que se liberta da dúvida e do medo pelo receio de se afeiçoar à autocomiseração. Sufocar-se com uma gota de busca pela liberdade não torna a própria vida um fardo mais suave a se carregar. Permitir-se o risco é, antes de tudo, suscitar reflexões, pesos e medidas, cumprimentar polidamente questões que podem indicar rotas cujo trajeto não teria sido calculado pela negação da incerteza. Oscilar faz parte da rotina do equilíbrio, como uma questão de complementaridade. Escolher entre o balanço ou a constância é como estar em uma dança. A depender da trilha sonora, da companhia, do objetivo e do contexto, haverá infinitas possibilidades e, entre elas, nenhuma será a única resposta para todas as demais. 

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