segunda-feira, 28 de agosto de 2017

O dia em que a estrela voltou a ser humana

Parc Floral de Paris - França (março/2012)
Certa feita, uma estrela abandonou o seu lugar ao pé do manto enluarado porque queria poder viver a realidade que admirava à distância há muitos milênios. Brilhava de emoção pela beleza da possibilidade de sentir nas papilas, na derme, nos olhos, no peito, na garganta, no pulmão e nos músculos faciais o que a fazia querer preservar apenas a lembrança de eras pregressas. Sim, aquela não era a sua primeira existência, permanecera daquela forma unicamente como um modo de se proteger daquilo que mais evitava: os extintores de luz.

Lembrara, algumas parcas vezes, em flashs de memória propositadamente enfraquecida, que a personagem originária era alguém de nome, carne e osso. E nessa composição havia marcas que a faziam querer esquecer o que era ser, pensar e pesar aquilo que tinha gosto amargo de ordem velada. Não bastava ter nome e carne se o osso pesava e ocupava mais espaço do que sua estrutura poderia carregar. 

Prestes a ignorar qualquer condução externa de prece de paz, e antes de explodir em pedaços afiados de cataclismo emocional, tivera a coragem (ou a fraqueza?) de se autoproteger e de se lançar rumo ao oceano onde apenas telescópios e atentos olhos nus poderiam enxergar a sua nova composição do ser. E como aquele lugar era especial, espacial, numa graciosa brincadeira que ia muito além dos vocábulos. Sua nova posição não apenas possibilitara livrar-se dos pesados ossos como também lhe fizera o favor de lhe apresentar cenários estonteantes que lhe faziam esquecer do que estava querendo se poupar.

Foi então que o medo de outrora chegou-lhe em um embrulho enfeitiçado, enviado por um dos deuses daquele distinto olimpo (e qual deles seria? Até hoje, não sabe e prefere silenciar as tentativas da descoberta). Como um anexo daquela oferenda, encontrou pequenas peças de um quebra-cabeça menor do que as pontas de sua composição. A curiosidade levantou a voz, suspendeu cada uma das peças e vestiu o manto da satisfação ao chegar à conclusão simbólica do presente: formara traços da realidade que malfadara. 

Com olhar nada preguiçoso, ergueu todo o seu corpo e viu que sua luz interna piscava incessantemente. Não desejava mais pesar como antes. Aqueles ossos não lhe pertenciam mais e enterrara-os tão bem em uma estrada de chão batido pela qual passara antes de encontrar em si as asas necessárias para se separar daquele nada remanso caminho. Então, por que o sentimento da dúvida brotara? Duvidava da capacidade de se arrepender ou da capacidade de querer retornar àquilo do qual tão veementemente quisera se afastar? O vislumbre da noite que lhe acompanhara durante os milênios mais tranquilos que tivera indubitavelmente afagavam a sua decisão de ali permanecer. Mas e quanto ao vislumbre do Sol? 

Foi durante aquele jogo de indecisões que, subitamente, começara a ser lembrada, pelo restinho das entranhas que pertencera à criatura anterior, do quanto sentia falta de poder experimentar novas aventuras e guiar-se quase que perdidamente rumo a uma nova direção. O gelo interno da novidade a suscitava ondas de ansiedade que pesavam desequilibradamente em seu ventre. Aquilo seria bom? E quanto daquele peso poderia ocupar o espaço que abandonara no deserto da certeza? Ninguém poderia esclarecer as dúvidas. Ninguém além de Chronos. E ele não era de conversar com palavras, mas apenas de apontar reflexos de projeções internas, para frente, para o lado ou para trás. Ah, como gostaria que aquele deus pudesse abandonar seus costumeiros protocolos e fizesse um favor àquela perdida criatura! Mas ele não saíra de seu posto e mantivera a obrigação de sua tarefa exatamente como tinha de ser.

A estrela, despertando de um transe compreensivelmente finito, desprendeu-se do seu altar. Admirou pela última vez as companhias e os cenários que a fizeram ali almejar, formou-se em tons e cores de mulher e pegou a estrada para a qual havia de rumar. Foi quando cochichou para si mesma que não poderia prever o que viria, mas certamente reconhecia a importância dos passos que dava. Pois, afinal, aquilo era o presente. O presente real, ou o milhares de vezes nada simples, real.

domingo, 27 de agosto de 2017

De quando a Srtª Racioemocional perdeu-se para se reencontrar

Créteil - França (novembro/2015)
Em um ímpeto aparentemente seguro, a Srtª Racioemocional sentou-se defronte ao computador em polvorosa por saber que sua mente inquieta produziria algo dentro de instantes. Assim que o cursor começou a piscar na tela, o turbilhão de pensamentos se dissipou, fugiu em disparada, para um lugar provavelmente seguro. Ao se dar conta disso, sua coluna a fez curvar para frente, os ombros caíram para baixo, a expiração empurrou seu centro de gravidade para o meio e as pálpebras se movimentaram em ritmo mais lento.

Inquieta com a possibilidade de não escrever, quando tanto o desejava, ela começa a maquinar em suas engrenagens a ideia de uma construção que, de repente, reportasse a sua situação impeditiva. Uma tentativa de pôr a máquina encefálica para funcionar ou uma maneira de suprir a inevitabilidade de escrever? E nessa função metalinguística seguiu saciando o desejo da conquista impressa das palavras.

"Música!", pensou rapidamente. "Preciso de música!", bradou veementemente. Um jukebox veio ao seu encontro imaginativo e se mostrou um tanto quanto conflitivo. Afinal, como escolher uma entre tantas, recentes e antigas, para se inspirar a debulhar a fibra interna? Pedir-lhe para selecionar uma canção seria como requisitar-lhe uma eleição entre a alegria e a esperança. Assim, separadamente. 

Foi então que percebeu que a plataforma que escolhera lhe conduzira a uma opção mais atrativa e mais atual, sobre a qual havia pensado recentemente. Ela versa sobre amor e expectativas (ok, dois pontos bem óbvios para uma escritora pensar a respeito). E sobre frustrações (mais uma obviedade narrativa). A voz marcante e meio rouca da cantora em junção com a melodia não apenas despertam o interesse do canto da Srtª Racioemocional mas igualmente o retorno de uma de suas pautas que havia escapado há pouco. 

Então, eis que de repente ela se dá conta de que aquela ideia poderia lhe render mais parágrafos, mais caracteres e se estender por entre as nuvens mentais, trazendo de volta as outras ideias fugitivas. Entretanto, por que agora ela pensa em guardá-las para as próximas publicações? No fim das contas, não era exatamente esse o desejo quando firmara a sua longa estrutura na cadeira, preparou bem a almofada para lhe apoiar, encheu a garrafa de água, afastou alguns cachos da testa e respirou uma vez profundamente antes de começar a usar alguns dos seus 10 dedos para dar vida ao que estava, até então, pipocando em sua massa encefálica?

Não. Precisava reconhecer que naquele momento era suficiente projetar apenas os primeiros esboços do retorno mais frequente aos laços da escrita crônica. E ela reconhecia tanto essa suficiência que, antes que o fluxo do rio de inspirações em que navegava fizesse mais uma curva, a Srtª Racioemocional lançou a âncora (instrumento habitualmente não apreciado por ela), mergulhou os pés naquele pedaço de mangue criativo e virou-se para observar o caminho em que naquele breve momento percorrera. Foi então que sua coluna a fez curvar para frente, os ombros caíram para baixo, a expiração empurrou seu centro de gravidade para o meio e as pálpebras se movimentaram em ritmo mais lento. Só que, dessa vez, um sorriso a distraiu de um provável bloqueio criativo. E, ali, ela se viu em um cenário de uma singeleza feliz. 

sábado, 5 de agosto de 2017

À vida que não cabe em chips

Fundação Gilberto Freyre - Recife/PE (maio/2017)
Olhe para os seus bebês enquanto caminham a passos inseguros defronte a lojas em uma manhã em que o Sol encoraja as suas mãos a celebrarem cada pisada como mais uma nova conquista do ser que cresce em meio ao caos.

Com uma mão, segure uma das palmas amadas e balance a sua outra em ritmo que comemora o momento de carinho tão escasso em nossas vistas.

Partilhe comidas e memórias que não estejam dentro do alcance de seus aplicativos virtuais.

Tire fotos de paisagens simbólicas, sob sua ótica pessoal, e não as compartilhe por meio do seu 3G. Guarde-as para posterior momento de deleite pessoal, como em um singelo prazer secreto.

Ao chegar em casa, desconecte o Wi-Fi do seu celular e permita-se ser mais humano e menos digital, mais vívido e menos curtido.

Dê um match na sua vida, like it or not, para rememorar que sua existência não depende de emoticons ou joinhas em bits para ser mais crível.

É mister criarmos mais coexistências tradicionais, onde não existem telas que direcionem nosso modo de vestir, comer, falar ou, até, (des)gostar. O risco em desenvolvermos uma geração de órfãos de humanidade existe e ele só tende a aumentar.