sábado, 27 de fevereiro de 2016

Animais racionais


O que difere o homem dos outros seres vivos? Nossa capacidade de organização social? Nossas casas e carros? Nossas redes sociais e smartphones? Sabemos que tudo isso se resume em uma só diferença que aprendemos desde os tempos de escola: a capacidade de raciocinar. Por isso é que somos considerados seres racionais, não é? Não entrarei no pormenor da inteligência, pois todos os seres vivos, irracionais ou nós, possuem tal capacidade, sendo compreendida de diversas maneiras.

Meu ponto, neste momento, é questionar a tal diferença. Se provamos, científica e empiricamente, a singularidade da razão humana por que insistimos em negá-la? Vivemos num mundo doente, como nos avisou Renato Russo. E a mais devastadora doença atual, em meu singelo ponto de vista, não se trata da epidemia do zika vírus, chikungunya ou dengue. Não. Ouso dizer que o desprezo pelo raciocínio é a nossa pior praga. Algo no nível da peste bubônica que devastou a Europa durante a Idade Média. Só que o estrago da peste atual parece bem pior em termos prospectivos.

Em qualquer cenário podemos tirar a prova disso. Cito-lhes dois de diversos exemplos recentes: um político e um musical. A respeito do primeiro ponto não exporei o que acredito ser o melhor viés. Vejo-me numa categoria reduzida em termos quantitativos. Seja em nível municipal ou federal. Sou diariamente pressionada a acreditar que não devo ter ponto de vista. Devo assimilar argumentos vomitados diariamente nos meios de comunicação de massa e simplesmente aceitar a realidade de argumentos que me fazem remeter aos capítulos dos livros de História que falavam sobre a ascensão dos Regimes Nazista e Fascista. 

Sou mulher, hétero, branca, classe média e de esquerda. Meu posicionamento político não se baseia em livros ou em um padrão hereditário, mas em um ser social mais democrático. Mais humano. Não partidário. Isso não significa que não divirjo dos meus pares; um pequeno grupo, mas (bravamente) resistente. Sou ser humana. Descartes já nos esclareceu a lógica: "Penso, logo existo". E pretendo seguir existindo e usando meus neurônios por bastante tempo.

Sobre o exemplo musical acontece a mesma estratégia adversária do questionamento em discordar. Como assim não gosto de música sertaneja, apenas tolero-a? Como assim não canto MPB, se é a minha cara? Como assim não canto o que as pessoas querem, apenas o que gosto? Como assim tenho o direito de achar algo cafona? 

É possível ser livre em tempos de ditadura do pensamento? 

Todas as provas de uma vida melhor estão aí para serem compradas a um preço razoável: apenas suaves prestações em negar ser humana. Nego a minha vontade de questionar e de buscar uma visão diferente do habitual (como seria o inabitual?) e recebo a proteção contra olhares nervosos, bocas inflamadas com vocabulário replicado de redes sociais e contra uma sensação de estranheza social. Melhor aceitar a bela oferta, não? Ser feliz em troca de ser uma ausente racional.

Esse tópico não é novo neste blog. Já o abordei relembrando um princípio da lógica chamado "ad populum". Funciona como uma daquelas propagandas da Ricardo Eletro ou das Casas Bahia. Traduzindo: todos estão indo para lá, então devo ir também. Todos pensam assim, então devo fazer o mesmo. Afinal de contas, não é gentil para com os outros ser uma rejeitada social. 

Ser gentil com os outros. Não magoá-los. Ser aceita. 

O medo da segregação nos aflige, não é? Sentimos a necessidade instintiva em pertencer a um grupo. É mais fácil rir em conjunto, ter ombros amigos, tapinhas nas costas e mais curtidas garantidas no Facebook. 

A minha sensação constante, e nauseante, é de que não basta sermos um ser sociável em constância. Temos que aceitar e reproduzir padrões. Estéticos, políticos, musicais, comportamentais, emocionais. E se não o fizermos estaremos condenados ao exílio da sociedade brasileira. A sentença é transitada em julgado sem qualquer direito à defesa, com base nos princípios difundidos pela sociedade de seres felizes em ser replicantes. 

Doze Homens e Uma Sentença (versão de 1997). Um filme que mostra valer a pena pensar fora do que é "lógico".

Sinto desapontar-lhes (quer dizer, já senti, mas há algum tempo não o sinto mais)... Prefiro a liberdade do questionamento à fé cega em temer a reprovação alheia. Com isso, não me isento do que já cometi, cometo ou cometerei em relação às escolhas de outras pessoas. Sou humana, afinal. Apenas sou um entre os 12 que não acusariam, de pronto, o jovem latino no extraordinário e brilhante filme "12 Homens e uma Sentença (Twelve Angry Men)". Sou o personagem de Jack Lemon, na versão de 1997 (a melhor, para mim), que, a meu ver, representa muito bem a ideia da Filosofia e seu poder em nos lembrar de ser humanos, de questionar, de raciocinar.

Não gosto de absolutos. Nem da palavra, nem do conceito. Incomoda a garganta e impõe limitação à mente. Aprisiona. E de prisões o mundo real já está cheio. Não preciso me encarcerar em uma mental. Precisamos de mais liberdade de raciocínio. Isso não significa sair por aí pregando verdades particulares. Apenas, reconhecer-se e ser, livremente, um animal racional.

Teatro dos Vampiros (Legião Urbana). Música, para mim, que liberta.

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