O suicídio da alma começa quando se exclui deliberadamente o poder da contestação. Entre a facilidade em descartar uma preocupação e a admissão de um ato questionável existe uma forte tendência ao liberalismo do bem-estar ungido socialmente para se sentir incapaz de estar vivo. Enxergo preparações constantes ao automatismo das aceitações, por mais que haja um sentido paradoxal de se pretender único. É mais idílica uma realidade de correntes, passadas a frente e a fio, do que uma de pausas reflexivas e questionadoras.
Na noite de ontem, durante uma conversa inicialmente superficial para um findar de semana, surpreendeu-me a ratificação do suicídio social. Ao se falar sobre lugares para dançar, relatou-se, entre risos insistentes, a seguinte apoplexia: "Não frequento mais esse determinado lugar porque tem muito menino novinho e na flor da idade. Eles ficam passando a mão nas bundas das mulheres durante toda a noite. Mas, tadinhos, são tão novinhos e cheios de vida, né? Quando estive lá, deixei apertar a minha bunda porque é uma diversão para eles. E faz parte, né?".
Se algum dia pudesse ser capaz de prever tamanha teoria de aceitação de normalidade apocalíptica atestaria blasfêmia sem pestanejar. A que ponto chegamos? Não se contesta uma agressão por ser normalizada pela vítima! Durante um curso de relevância incalculável, sobre violência psicológica contra a mulher, a pesquisadora e professora Gláucia Diniz, da UnB, pediu-nos reiteradamente para termos bastante cuidado com as teorias criadas por nós mesmos. As compreensões do "ser normal". A família "normal". A pessoa "normal". Atos "normais". Tudo isso pode nos levar ao reforço da prática de crimes.
A conivência em esquartejar o direito em ser humano macula a alma e enoja o coração. A pulsação, a princípio, parece e soa usual. Entretanto, o veneno injetado por anos de 'autodissecação' encontrará alojamento necessário à proliferação de um câncer social: o dissabor em se alimentar de insatisfações. Em nome de quem assim se prossegue? De que vale a sobrevida? A quem pertencem nossos contragostos senão a nós mesmos? Então, por que insistir na levada da maré de automutilações emocionais?
Pensei que a era dos robôs estivesse mais distante. Se bem que, até eles, estão sendo construídos com sensações semelhantes aos humanos. Destes últimos, aliás, onde foi parar a razão em se sentir menos "normal" e mais a si mesmo? Disseco questionamentos, resseco esperanças, espero mudanças. Porque com esse constante suicídio contestador a humanidade caminha para um grande cenário de cemitério emocional.
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