sábado, 23 de fevereiro de 2013

As mentiras por Verissimo (e os homens por Endie)


Deleitar-se com mentiras pode ser um pouco paradoxal, senão totalmente controverso.

Ainda mais para os que me conhecem, mesmo que num nível iniciante.

Mas hoje, um sábado quente e quase comum, elas me fizeram sorrir. Especialmente por se tratar de mentiras masculinas.

O responsável pelos risos (por vezes gargalhadas) e pela inspiração deste texto é o admirável Luis Fernando Verissimo.

Célebre e incomparável cronista (o meu preferido - e meu grande modelo, admito) trouxe-me em cada historieta o lado curioso, bem elaborado e, por vezes, mirabolante das inverdades dos homens nossos de cada dia.

Esses seres, que encantam mulheres pensantes como nós e que igualmente nos intrigam, são expostos de uma maneira cômica e, por muitas vezes, sarcástica.

Eles, grandes responsáveis pelas cantorias das baladas românticas no chuveiro, no lavar da louça, ou pelos sorrisos bobos para o nada, ou pelo rubor aflorado de nossas bochechas (especialmente se vocês possuírem o mesmo bronze natural que tenho, igual ao da Branca de Neve).

Homens mentem. 

Mas isso não os torna desprezíveis.

Afinal, todos mentimos (ou omitimos) em determinadas situações.

O que os torna diferentes é a maneira como fazem. A razão poderá ser diversa. Mas a maneira é, normalmente, curiosa.

Não vou apoiar o generalismo neste texto. Há homens e homens, por certo.

Entretanto, falando de uma maneira mais ampla (e separando muitíssimo bem o joio do trigo), eles são admiráveis. 

Por menos que sejam correspondentes aos personagens emotivos, atenciosos, amorosos que encontramos nos filmes de Hollywood (e nos da Disney em especial), isso os torna até figuras especiais.

Não quero ser radical e dizer que só os nossos amigos gays é que podem ser sensíveis. Homens héteros também possuem momentos de sensibilidade.

Mas normalmente são tão bem internalizados que as mulheres acabam acreditando que o canal lacrimal deles simplesmente enferrujou desde que deram o seu primeiro (e, quiçá, último) choro [leia-se: na maternidade].

Também não pretendo  dizer que a ala feminina deve se deixar levar por alguns homens das cavernas que se encontram por aí, a não ser que realmente gostem desse tipo (e se gostarem aviso: meus pêsames!).

É só uma questão de natureza.

Homens são diferentes de nós, mulheres.

E ainda bem que o são!

Só para terem a noção do perigo que seria uma possível semelhança, vou começar pegando pesado: imaginemos se eles também tivessem TPM.

Um lado só já basta, não é?

Se fossem complicados como, muitas vezes, o somos?

Mulheres e Homens são diferentes como rouxinóis e ornitorrincos são.

Ou seja, ambos diversos, ambos importantes para o equilíbrio da natureza.

Ok, nem sempre há equilíbrios. Por vezes umas discordâncias, umas decepções, umas discussões. 

Mas o imprescindível é saber que sempre existe um amanhã. E uma nova esperança de eles, finalmente, concordarem conosco! 
=D

Brincadeira à parte, graças a Deus eles existem, com seus efeitos e defeitos colaterais, trazendo-nos igualmente alegrias, despertando corações pulsantes e fazendo-nos sorrir, como o fez, tão bem, o meu mestre Verissimo (conforme exemplifico abaixo, trazendo dois de seus brilhantes textos sobre as mentiras que os homens contam).


Os Moralistas
Luis Fernando Verissimo

— Você pensou bem no que vai fazer, Paulo?

— Pensei. Já estou decidido. Agora não volto atrás.

— Olhe lá, hein, rapaz...

Paulo está ao mesmo tempo comovido e surpreso com os três amigos. Assim que souberam do seu divórcio iminente, correram para visitá-lo no hotel. A solidariedade lhe faz bem. Mas não entende aquela insistência deles em dissuadi-lo. Afinal, todos sabiam que ele não se acertava com a mulher.

— Pense um pouco mais, Paulo. Reflita. Essas decisões súbitas...

— Mas que súbitas? Estamos praticamente separados há um ano!

— Dê outra chance ao seu casamento, Paulo.

— A Margarida é uma ótima mulher.

— Espera um pouquinho. Você mesmo deixou de frequentar nossa casa por causa da Margarida. Depois que ela chamou vocês de bêbados e expulsou todo mundo.

— E fez muito bem. Nós estávamos bêbados e tínhamos que ser expulsos.

— Outra coisa, Paulo. O divórcio. Sei lá.

— Eu não entendo mais nada. Você sempre defendeu o divórcio!

— É. Mas quando acontece com um amigo...

— Olha, Paulo. Eu não sou moralista. Mas acho a família uma coisa importantíssima. Acho que a família merece qualquer sacrifício.

— Pense nas crianças, Paulo. No trauma.

— Mas nós não temos filhos!

— Nos filhos dos outros, então. No mau exemplo.

— Mas isto é um absurdo! Vocês estão falando como se fosse o fim do mundo. Hoje, o divórcio é uma coisa comum. Não vai mudar nada.

— Como, não muda nada?

— Muda tudo!

— Você não sabe o que está dizendo, Paulo! Muda tudo.

— Muda o quê?

— Bom, pra começar, você não vai poder mais frequentar as nossas casas.

— As mulheres não vão tolerar.

— Você se transformará num pária social, Paulo.

— O quê?!

— Fora de brincadeira. Um reprobo.

— Puxa. Eu nunca pensei que vocês...

— Pense bem, Paulo. Dê tempo ao tempo.

— Deixe pra decidir depois. Passado o verão.

— Reflita, Paulo. É uma decisão seriíssima. Deixe para mais tarde.

— Está bem. Se vocês insistem...

Na saída, os três amigos conversam:

— Será que ele se convenceu?

— Acho que sim. Pelo menos vai adiar.

— E no solteiros contra casados da praia, este ano, ainda teremos ele no gol.

— Também, a ideia dele. Largar o gol dos casados logo agora. Em cima da hora. Quando não dava mais para arranjar substituto.

— Os casados nunca terão um goleiro como ele.

— Se insistirmos bastante, ele desiste definitivamente do divórcio.

— Vai aguentar a Margarida pelo resto da vida.

— Pelo time dos casados, qualquer sacrifício serve.

— Me diz uma coisa. Como divorciado, ele podia jogar no time dos solteiros?

— Podia.

— Impensável.

— É.

— Outra coisa.

— O quê?

— Não é reprobo. É réprobo. Acento no "e".

— Mas funcionou, não funcionou?

Texto extraído do livro "As Mentiras que os Homens Contam", Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 41.


Homem que é homem
Luis Fernando Verissimo

Homem que é Homem não usa camiseta sem manga, a não ser para jogar basquete. Homem que é Homem não gosta de canapés, de cebolinhas em conserva ou de qualquer outra coisa que leve menos de 30 segundos para mastigar e engolir. Homem que é Homem não come suflê. Homem que é Homem — de agora em diante chamado HQEH — não deixa sua mulher mostrar a bunda para ninguém, nem em baile de carnaval. HQEH não mostra a sua bunda para ninguém. Só no vestiário, para outros homens, e assim mesmo, se olhar por mais de 30 segundos, dá briga.

HQEH só vai ao cinema ver filme do Franco Zeffirelli quando a mulher insiste muito, e passa todo o tempo tentando ver as horas no escuro. HQEH não gosta de musical, filme com a Jill Clayburgh ou do Ingmar Bergman. Prefere filmes com o Lee Marvin e Charles Bronson. Diz que ator mesmo era o Spencer Tracy, e que dos novos, tirando o Clint Eastwood, é tudo veado.

HQEH não vai mais a teatro porque também não gosta que mostrem a bunda à sua mulher. Se você quer um HQEH no momento mais baixo de sua vida, precisa vê-lo no balé. Na saída ele diz que até o porteiro é veado e que se enxergar mais alguém de malha justa, mata.

E o HQEH tem razão. Confesse, você está com ele. Você não quer que pensem que você é um primitivo, um retrógrado e um machista, mas lá no fundo você torce pelo HQEH. Claro, não concorda com tudo o que ele diz. Quando ele conta tudo o que vai fazer com a Feiticeira no dia em que a pegar, você sacode a cabeça e reflete sobre o componente de misoginia patológica inerente à jactância sexual do homem latino. Depois começa a pensar no que faria com a Feiticeira se a pegasse. Existe um HQEH dentro de cada brasileiro, sepultado sob camadas de civilização, de falsa sofisticação, de propaganda feminina e de acomodação. Sim, de acomodação. Quantas vezes, atirado na frente de um aparelho de TV vendo a novela das 8 — uma história invariavelmente de humilhação, renúncia e superação femininas — você não se perguntou o que estava fazendo que não dava um salto, vencia a resistência da família a pontapés e procurava uma reprise do Manix em outro canal? HQEH só vê futebol na TV. Bebendo cerveja. E nada de cebolinhas em conserva! HQEH arrota e não pede desculpas.
*
Se você não sabe se tem um HQEH dentro de você, faça este teste. Leia esta série de situações. Estude-as, pense, e depois decida como você reagiria em cada situação. A resposta dirá o seu coeficiente de HQEH. Se pensar muito, nem precisa responder: você não é HQEH. HQEH não pensa muito!


Situação 1


Você está num restaurante com nome francês. O cardápio é todo escrito em francês. Só o preço está em reais. Muitos reais. Você pergunta o que significa o nome de um determinado prato ao maître. Você tem certeza que o maître está se esforçando para não rir da sua pronúncia. O maître levará mais tempo para descrever o prato do que você para comê-lo, pois o que vem é uma pasta vagamente marinha em cima de uma torrada do tamanho aproximado de uma moeda de um real, embora custe mais de cem. Você come de um golpe só, pensando no que os operários são obrigados a comer. Com inveja. Sua acompanhante pergunta qual é o gosto e você responde que não deu tempo para saber. 0 prato principal vem trocado. Você tem certeza que pediu um "Boeuf à quelque chose" e o que vem é uma fatia de pato sem qualquer acompanhamento. Só. Bem que você tinha notado o nome: "Canard melancolique". Você a princípio sente pena do pato, pela sua solidão, mas muda de idéia quando tenta cortá-lo. Ele é um duro, pode aguentar  Quando vem a conta, você nota que cobraram pelo pato e pelo "boeuf' que não veio. Você: a) paga assim mesmo para não dar à sua acompanhante a impressão de que se preocupa com coisas vulgares como o dinheiro, ainda mais o brasileiro; b) chama discretamente o maître e indica o erro, sorrindo para dar a entender que, "Merde, alors", estas coisas acontecem; ou c) vira a mesa, quebra uma garrafa de vinho contra a parede e, segurando o gargalo, grita: "Eu quero o gerente e é melhor ele vir sozinho!


Situação 2


Você foi convencido pela sua mulher, namorada ou amiga — se bem que HQEH não tem "amigas", quem tem "amigas" é veado — a entrar para um curso de Sensitivação Oriental. Você reluta em vestir a malha preta, mas acaba sucumbindo. O curso é dado por um japonês, provavelmente veado. Todos sentam num círculo em volta do japonês, na posição de lótus. Menos você, que, como está um pouco fora de forma, só pode sentar na posição do arbusto despencado pelo vento.

Durante 15 minutos todos devem fechar os olhos, juntar as pontas dos dedos e fazer "rom", até que se integrem na Grande Corrente Universal que vem do Tibete, passa pelas cidades sagradas da Índia e do Oriente Médio e, estranhamente, bem em cima do prédio do japonês, antes de voltar para o Oriente. Uma vez atingido este estágio, todos devem virar para a pessoa ao seu lado e estudar seu rosto com as pontas dos dedos. Não se surpreendendo se o japonês chegar por trás e puxar as suas orelhas com força para lembrá-lo da dualidade de todas as coisas. Durante o "rom" você faz força, mas não consegue se integrar na grande corrente universal, embora comece a sentir uma sensação diferente que depois revela-se ser câimbra. Você: a) finge que atingiu a integração para não cortar a onda de ninguém; b) finge que não entendeu bem as instruções, engatinha fazendo "rom" até o lado daquela grande loura e, na hora de tocar o seu rosto, erra o alvo e agarra os seios, recusando-se a soltá-los mesmo que o japonês quase arranque as suas orelhas; c) diz que não sentiu nada, que não vai seguir adiante com aquela bobagem, ainda mais de malha preta, e que é tudo coisa de veado.


Situação 3


Você está numa daquelas reuniões em que há lugares de sobra para sentar, mas todo mundo senta no chão. Você não quis ser diferente, se atirou num almofadão colorido e tarde demais descobriu que era a dona da casa. Sua mulher ou namorada está tendo uma conversa confidencial, de mãos dadas, com uma moça que é a cara do Charlton Heston, só que de bigode. O jantar é à americana e você não tem mais um joelho para colocar o seu copo de vinho enquanto usa os outros dois para equilibrar o prato e cortar o pedaço de pato, provavelmente o mesmo do restaurante francês, só que algumas semanas mais velho. Aí o cabeleireiro de cabelo mechado ao seu lado oferece:

— Se quiser usar o meu...

— O seu...?

— Joelho.

— Ah...

— Ele está desocupado.

— Mas eu não o conheço.

— Eu apresento. Este é o meu joelho.

— Não. Eu digo, você...

— Eu, hein? Quanta formalidade. Aposto que se eu estivesse oferecendo a perna toda você ia pedir referências. Ti-au.

Você: a) resolve entrar no espírito da festa e começa a tirar as calças; b) leva seu copo de vinho para um canto e fica, entre divertido e irônico, observando aquele curioso painel humano e organizando um pensamento sobre estas sociedades tropicais, que passam da barbárie para a decadência sem a etapa intermediária da civilização; ou c) pega sua mulher ou namorada e dá o fora, não sem antes derrubar o Charlton Heston com um soco.

Se você escolheu a resposta a para todas as situações, não é um HQEH. Se você escolheu a resposta b, não é um HQEH. E se você escolheu a resposta c, também não é um HQEH. Um HQEH não responde a testes. Um HQEH acha que teste é coisa de veado.
*
Este país foi feito por Homens que eram Homens. Os desbravadores do nosso interior bravio não tinham nem jeans, quanto mais do Pierre Cardin. O que seria deste pais se Dom Pedro I tivesse se atrasado no dia 7 em algum cabeleireiro, fazendo massagem facial e cortando o cabelo à navalha? E se tivesse gritado, em vez de "Independência ou Morte", "Independência ou Alternativa Viável, Levando em Consideração Todas as Variáveis!"? Você pode imaginar o Rui Barbosa de sunga de crochê? O José do Patrocínio de colant? 0 Tiradentes de kaftan e brinco numa orelha só? Homens que eram Homens eram os bandeirantes. Como se sabe, antes de partir numa expedição, os bandeirantes subiam num morro em São Paulo e abriam a braguilha. Esperavam até ter uma ereção e depois seguiam na direção que o pau apontasse. Profissão para um HQEH é motorista de caminhão. Daqueles que, depois de comer um mocotó com duas Malzibier, dormem na estrada e, se sentem falta de mulher, ligam o motor e trepam com o radiador. No futebol HQEH é beque central, cabeça-de-área ou centroavante. Meio-de-campo é coisa de veado. Mulher do amigo de Homem que é Homem é homem. HQEH não tem amizade colorida, que é a sacanagem por outros meios. HQEH não tem um relacionamento adulto, de confiança mútua, cada um respeitando a liberdade do outro, numa transa, assim, extraconjugal mas assumida, entende? Que isso é papo de mulher pra dar pra todo mundo. HQEH acha que movimento gay é coisa de veado.

HQEH nunca vai a vernissage.

HQEH não está lendo a Marguerite Yourcenar, não leu a Marguerite Yourcenar e não vai ler a Marguerite Yourcenar.

HQEH diz que não tem preconceito mas que se um dia estivesse numa mesma sala com todas as cantoras da MPB, não desencostaria da parede.

Coisas que você jamais encontrará em um HQEH: batom neutro para lábios ressequidos, pastilhas para refrescar o hálito, o telefone do Gabeira, entradas para um espetáculo de mímica.

Coisas que você jamais deve dizer a um HQEH: "Ton sur ton", "Vamos ao balé?", "Prove estas cebolinhas".

Coisas que você jamais vai ouvir um HQEH dizer: "Assumir", "Amei", "Minha porção mulher", "Acho que o bordeau fica melhor no sofá e a ráfia em cima do puf".

Não convide para a mesma mesa: um HQEH e o Silvinho.

HQEH acha que ainda há tempo de salvar o Brasil e já conseguiu a adesão de todos os Homens que são Homens que restam no país para uma campanha de regeneração do macho brasileiro.

Os quatro só não têm se reunido muito seguidamente porque pode parecer coisa de veado.

Texto extraído do livro "As mentiras que os homens contam, Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 89.

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