segunda-feira, 20 de maio de 2019

Na rota da chuva / Sur la route de la pluie


Hendaye - España

Volto com um sorriso bobo no rosto, como quem esconde uma piada sagaz enquanto está se mordendo para contar a todos. Embalada por uma trilha sonora preparada para a curta e aventurosa viagem, a vontade é de compartilhar com o mundo que é possível ter um final de semana incrível regado a lama, chuva, frio e longas noites mal dormidas. 

Esse cenário aparentemente caótico é, por vezes, enigmático ao esconder possibilidades infinitas de sorrisos: seja em um café da manhã sincronizado em meio ao mar de colchões infláveis, ou durante a percepção tardia de que ter apenas um banheiro para oito pessoas nunca é uma boa ideia.

Esse contexto, que se encaixa perfeitamente no trecho dos canhões da Abertura de Tchaikovsky 1812, pode revelar emblemáticos e essenciais momentos de alegria:


- No soltar da voz despretencioso no descer de uma colina ou na estrada de volta para a hospedagem (de Elton John à Britney Spears);


- No chocolate com churros delicioso e muito bem-vindo ao quarteto ensopado e enlameado (porém assaz esperançoso);


- No café da manhã embalado por um violão amigo com uma das mais belas canções: Can't Help Falling in Love;


- Na graça com gosto de infância e textura amarelada na pelúcia húngara (köszönöm Kacsa!);


- No observar da dança entre dois amigos, por vezes levada à sério, por vezes nem tanto;


- No reparar feliz de que a música popular brasileira combina tanto com boas companhias;


- Nos ombros ou braços amigos após excesso de vento, lama e plantas que espetam no caminho tortuoso da colina espanhola;


- No compartilhar festeiro de vários momentos de comida. No restaurante ou na mesa da sala. Ela que sempre nos acompanha com fidelidade indubitável, nas conversas ou nas refeições.


Ao final da aventura (in)esperada, nos damos conta de que muitas vezes podemos ter ótima convivência mesmo não sabendo ao certo identificar o que nos conecta fortemente àquelas pessoas tão diferentes, porém tão próximas em seus anseios de seguirem a tônica do carpe diem compartilhado. 


Até mesmo se perder é válido para encontrar o melhor caminho e memoráveis risadas. Mesmo que isso te leve à emoção de chegar poucos minutos antes dos demais amigos e aguardá-los debochadamente, molhado e com respiração ofegante, com o olhar irônico de quem há muito tempo os estava confortavelmente aguardando. 


Um amigo reparou recentemente que gosto muito da chuva, por usá-la frequentemente nos meus textos como sinônimo de boas e necessárias inspirações. 


Um outro me mostrou que mesmo encharcados no meio da estrada podemos nos confortar com um dueto de One More Try, regado a risos e imediato sentimento de identificação musical (Ah, George Michael!).


Definitivamente, a chuva é capaz de trazer ventos, sentimentos e risos memoráveis.


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Je reviens avec un sourire un peu bête, comme si je cachais avec difficulté une blague sagace pas encore prête pour être partagée avec tout et n'importe qui. Emballée par une bande sonore préparée pour le voyage court et aventureux, l'envie est de partager avec le monde entier qu'il est possible de passer un incroyable weekend arrosé de boue, de pluie, de froid et de longues nuits sans bien s'endormir.


Ce scénario apparemment chaotique est parfois énigmatique cache des possibilités infinies de sourires : qu’il s’agisse d’un petit-déjeuner synchronisé au milieu de la mer de matelas gonflables, ou de la perception tardive selon laquelle il n’est jamais bon d’avoir une seule salle de bain pour huit personnes.


Ce contexte, qui s’inscrit parfaitement dans la section des canons de l’ouverture de Tchaïkovski 1812, peut révéler des moments de joie emblématiques et essentiels :


- Dans la libération de la voix sans prétention en descendant une colline ou sur le chemin du retour au logement (d'Elton John à Britney Spears) ;


- Dans le chocolat avec des churros délicieux et très bienvenus dans le quatuor trempé et boueux (mais plutôt plein d’espoir) ;


- Au petit déjeuner emballé par une guitare amie avec l'une des plus belles chansons : Can't Help Falling in Love ;


- Dans la grâce avec le goût de l'enfance et la texture jaunâtre de la peluche hongroise (köszönöm Kacsa!) ;


- Dans l'observation de la danse entre deux amis, parfois prise au sérieux, parfois pas ;


- Dans la remarque, avec plaisir, que la musique populaire brésilienne se combine tellement avec de bonnes compagnies ;


- Dans les épaules ou les bras amis, après un vent excessif, de la boue et des plantes qui crachent sur le chemin tortueux de la colline espagnole ;


- Dans le partage animé aux plusieurs moments de nourriture. Au restaurant ou à la table du salon. Elle qui nous accompagne toujours avec une fidélité incontestable, dans les conversations ou dans les repas.


À la fin de l’aventure (in)attendue, nous réalisons que nous pouvons souvent avoir une excellente relation même si nous ne savons pas avec certitude ce qui nous relie à des personnes si différentes, mais si proches dans leur désir de suivre la carpe diem partagée. 


Même le fait de se perdre vaut la peine pour que l'on puisse trouver le meilleur chemin et des rires mémorables. Même si cela vous amène au frisson de venir quelques minutes devant les autres amis et de les attendre, avec moquerie, mouillés et à bout de souffle, portant un regard ironique de ceux qui attendent confortablement depuis longtemps.


Un ami a récemment remarqué que j'aime beaucoup la pluie, car je l'utilise souvent dans mes textes comme synonyme de bonne et nécessaire source d'inspiration.


Un autre m'a montré que même trempés au milieu de la route, nous pouvons nous réconforter avec un duo de One More Try, comblé de rire et d'un sentiment immédiat d'identification musicale (Oh là là, George Michael !).


La pluie est définitivement capable d’apporter des vents, des sentiments et des rires mémorables.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Do outro lado do espelho ou de quando a chuva chegou

Andei sentindo as gotas de chuva na testa, nas lentes dos óculos e no sorriso que aguardava ansioso uma certa mudança. Lembrei-me de meu avô que dizia ser a chuva um sinal de limpeza. Pensei que seria a resposta que queria. Mas naquela noite, recebi uma resposta da chuva, porém era a que precisava. Doeu. Doeu porque quebrou o encantamento invisível. Nós, sonhadores escassos, ainda insistimos em lançar encantos para quebrar a dureza da realidade autofágica. Entretanto, a natureza, sendo mais forte do que as necessidades superficiais humanas, assola as fantasias infantis que insistem em nos perseguir.

Foi quando senti o caos da decisão aparecer repentinamente em minha mente e em minhas mãos. Sabia que esta noite seria uma noite de decisões, apenas não sabia que estaria do outro lado do espelho. Este tem duas faces e, por vezes, esqueço disso. Às vezes, permaneço no lado do reflexo alheio e esqueço que sou eu a linha de frente do plano visual. Hoje havia me esquecido disso. Mas a chuva me lembrou, além do banho quente e do Elton John. 

Por alguns minutos, quando do rachar do espelho, quis gritar pro mundo, talvez para salvar o lado fantasioso da desilusão. Entretanto, a chuva lá fora foi mais forte e me impediu de prejudicar a garganta. Foi então que me lembrei de um de meus poderes mais fortes: a palavra escrita. Escrevi, pus em frases os verbos e os adjetivos que exprimem o meu acordar diante do espelho. 

Ainda não estou totalmente consciente desse meu poder de honestidade sentimental; mas quando tiver essa consciência estou certa de que a fantasia não sera mais necessária. De que não precisarei mais fingir. Porque eu sou a personagem mais importante da minha história. E os coadjuvantes não devem tomar conta do meu roteiro.

sábado, 24 de novembro de 2018

O Bolero e a bicicleta: sobre os prazeres que a vida pede

Em dois dias, ontem e hoje, oportunizei-me momentos necessários de (re)descoberta. Que foram lindos em suas próprias particularidades. Começo pela descrição do cenário, ou melhor, da rota até o primeiro cenário.

O dia era de chuva intermitente e frio, contexto visual e sensorial previsto no outono. As atividades anteriores renderam o esperado em termos de estudos. Nem mais, nem menos. Entretanto, o cume da expectativa chegaria à noite. 

Sem muitas cerimônias, o tal momento era a apresentação ao vivo da minha música clássica preferida, o Bolero de Ravel. 

Desde pequena, de criança mesmo, essa peça me emociona e me impulsiona a sorrir com os olhos marejados. Para quem não a conhece, uma sincera sugestão musical. Sim, é uma música longa, mas para mim ela possui o tempo exato para retratar simbolicamente a caminhada pela qual passamos em nossos projetos de vida. 

Começamos a passos lentos, por vezes inseguros, com uma marcha tímida que vai tomando vida a cada nova descoberta de sons, de notas, de erros e acertos. Além disso, cada novo instrumento que acompanha essa jornada traz um equilíbrio notável e essencial para que a grande sinfonia do projeto tome forma. 

É nesse cenário que a música cresce e se engaja na mistura de sentimentos e sentidos acumulados e (alguns) ainda não explorados interna e/ou externamente. Há reação imediata e incontrolável quando da entrada de todos os instrumentos de corda e de sopro. A finalização com as percussões nos faz desfincar os pés da zona de conforto que até o momento nos impede de arriscar a mudança imprescindível para a realização do desejo almejado.

Eis minha interpretação do Bolero, que ontem me foi apresentado na versão ao vivo pela primeira vez e tocado pela Orquestra Nacional de Bordeaux Aquitaine. Antes da chegada a esse evento, a lua cheia cintilava pela janela do tram lotado, enquanto, sentada estava, ouvia a proposta da playlist do Spotify na qual Janis Joplin me lembrava de sua valiosa contribuição musical com a canção Mercedes Benz. 

A voz ragada de Joplin parecia contrastar harmoniosamente bem com o cenário no qual as rochas lunares estavam tão à mostra quanto a interpretação gutural da cantora. Neste ponto preciso do caminho, antevi a escrita do presente texto e sabia igualmente que não teria as palavras exatas para refletir o que sentia. 

Nem o frio chuvoso ou os três caras com as pernas escancaradas que se sentaram à minha frente atrapalharam o prazer que estava por vir. No auditório, fui recepcionada por lembranças apetitosas de quando estivera há alguns meses com minha mãe, numa apresentação do coral da ópera local. 

Após o ensaio de alguns instrumentos, os quais despertavam as notas que me haviam acelerado muitas vezes os batimentos internos, Ravel (ainda não o Bolero, que seria deixado inteligentemente para o final) e Debussy encantaram a plateia formada por gerações das mais diversas. Foram cerca de 1h40 de espetáculo, cerca de 15 minutos dos quais dedicados ao Bolero. 

Quando me dei conta de que era chegado o momento, sabia que meu rosto estava totalmente entregue à emoção do que há tanto aguardava. Com cada trecho da música eu descobria os instrumentos vários que integravam aquela peça e me apaixonava ainda mais por ela. Como música é algo tão precioso!

Na expectativa pela correspondência das notas já conhecidas, dois instrumentos não foram tão precisos quanto o esperado. Entretanto, tratei logo de pensar que assim como na vida nossas trilhas têm falhas a música não deixaria de ser sublime por conta disso. 

Assim, ao atingir os últimos minutos majestosos com a integração de todos os instrumentos da sinfônica, eu tinha a certeza de que minha alma pertencia àquela música e de que poderia me entregar aos sentimentos mais fortes que me fossem despertados por ela. 

Toda essa mistura de emoções foi entrelaçada a lembranças de momentos da infância, da adolescência e da vida adulta. De memórias com pessoas que tornaram possível a minha chegada até aquele extraordinário momento.

A volta para casa foi sublimada pela chuva que caia. Ah! E como estava bela a fachada da Cathédral Saint-André! Sim, ainda há muita beleza a ser reparada na cidade que aprecio tanto. Sabia que aquilo era felicidade e isso me deixou alerta às próximas escolhas de rotas no cotidiano.

Pela manhã, ainda enebriada pelo calor do espetáculo, decidira tirar da linha do desejo a ideia de retomar os passeios de bicicleta, tão presentes na minha infância. Após cerca de 15 anos sem fazê-lo cotidianamente, aluguei o dispositivo e com o equilíbrio meio tenso fui sorrindo pelo caminho da minha vizinhança cuja luz do Sol combinava com a fraca presença de pessoas no ambiente. Precisava de espaço e de menos barulho possível para poder aproveitar bem a retomada do que outrora me satisfazia.

Foram cerca de 30 minutos para perceber que aquilo também deveria integrar o meu cotidiano. As pernas doerão, bem sei, após a ladeira desconhecida e as pedaladas bambas, mas esses fatos não impedem o desejo de seguir retomando o que me faz reagir positivamente às manifestações da vida. 

Para escutar a minha versão, até agora preferida, do Bolero de Ravel (que há apenas algumas semanas descobri que era francês. Essa conexão não é à toa...), encantadoramente tocada pela Orquestra Sinfônica de Londres: 



sábado, 20 de outubro de 2018

33 fatos que aprendi até os 33

1. É fundamental respeitar a sua própria opinião. Mas ter coragem para mudá-la, quando necessário, é bem nobre.

2. O gosto para comidas e bebidas transforma-se ao longo dos anos, e te surpreende em vários sentidos. Dica: permita-se conhecer novos sabores. É uma experiência fundamental.

3.  Realizar um grande sonho de infância é maravilhoso e emocionante. Vale (muito) a pena correr atrás. Superar obstáculos é muito difícil, mas o resultado final dá um poder fodástico!

4. Os conselhos de minha mãe estão corretos 95% do tempo. E às vezes é bem difícil admitir isso. Ah, os outros 5% equivalem a minha parte mais diplomática que ela diz que não tem tanto quanto eu.

5. Dica de investimento: seja poliglota. É muito bom ser independente em termos de viagens e poder conhecer outras culturas com menos filtros possível.

6. A música é o maior amor (imaterial) da minha vida.

7. Voltar a estudar depois dos 30 anos, sobretudo estudos universitários, é um desafio incrivelmente fabuloso.

8. Comunicação é apaixonante. Apesar do desafio cotidiano que tenho nessa área, eu amo a minha escolha profissional. Se puder amar o que se faz, com todos os seus altos e baixos inclusos, faça-o.

9. Morar longe, bem longe mesmo, da família e de todos que conhece e ter uma nova vida no exterior é difícil pra chuchu! Entretanto, faz um bem arretado e nos faz evoluir pessoal e profissionalmente de maneira inimaginável.

10. Quando a morte de alguém que se ama tanto chega, não há como prever o tamanho da dor da saudade que se terá tempos depois do falecimento. A dor é única e, por vezes, dá medo. Porém, é muito muito bom saber que você soube valorizar esse amor.

11. Se puder, vá ao menos uma vez por mês ao teatro (para ver peças, concertos e/ou óperas). É enriquecedor energizar o cérebro com cultura.

12. Não tenha vergonha de se emocionar e nem de chorar quando necessário. É humano viver o que se sente de verdade. Dica: emocione-se musicalmente. É uma experiência assustadoramente maravilhosa.

13. Não deixe ninguém te desmerecer ou te desrespeitar. Ninguém. Revide quando valer a pena. E você vai saber quando realmente valerá.

14. A perda do equilíbrio emocional, o estresse, não vale a pena. Nunca. Não vai melhorar a situação e nem fazer você esquecê-la.

15. Detesto quando alguém desfaz dos outros. Discordar de opinião ou não gostar de alguém é um direto de cada um. Mas partir para o desrespeito é cruel.

16. Não queira a perfeição. É estúpido e nunca vai acontecer. Dar o melhor de si é diferente de querer ser perfeito.

17. Gosto muito de fazer as coisas corretamente. Espírito de justiça (libriano ou não) segue firme.

18. É muito bom caminhar e prestar atenção nas pessoas e nas paisagens. Observar o mundo é um experiência essencial.

19. Sou uma pessoa muito carinhosa e atenciosa. Isso não é por ser brasileira, nem por ser nordestina. Tem a ver com a criação. Tem a ver com minha bagagem histórica. E tenho orgulho de ser assim.

20. Os 20 anos foi a fase mais difícil e turbulenta em muitos sentidos. A fase dos 30 está sendo incrivelmente poderosa.

21. Fazer terapia é fundamental. Em qualquer momento da vida.

22. Tenha mais de um ciclo de amizades. Vale e muito a pena.

23. Seja independente. É maravilhoso.

24. Tenho um orgulho danado de ser feminista. E isso tem super a ver com a questão da independência (n. 23).

25. Nunca fui materialista. Querer mais coisas materiais nunca é o melhor caminho para se sentir melhor consigo mesmo.

26. Não seja pirangueira (vocabulário pernambucano que significa "mão de vaca"). Já fui. E muito. E não é bom. Saiba ser econômico sem deixar de viver bem equilibrado.

27. Ler e viajar são os melhores investimentos que já fiz.

28. Surpreenda quem você ama. Não ache que só porque já existe amor que as coisas devem permanecer como estão. Não precisa comprar coisas. Faça algo com carinho. É poderosamente enriquecedor para ambas as partes.

29. Ter uma péssima referência paterna na vida dói muito. As cicatrizes ficam. Terapia ajuda. Mas o mais importante que aprendi é não culpar ninguém pelos seus próprios erros. Minha opinião é admitir a dor, não se obrigar a perdoar (isso é pessoal e ninguém nunca tem que te impor nada, muito menos o perdão) e compreender que você é responsável por todas as suas decisões.

30. Escutar cobranças é uma merda. Sempre. Principalmente cobranças machistas, como de casamento e de filhos.

31. Ser preconceituoso é outra merda. Sempre.

32. Quando não souber o que fazer, sobretudo em uma situação emocionalmente difícil, não tome decisões precipitadas. Você vai achar a melhor solução. E (muito provavelmente) haverá pessoas
que lhe ajudarão. Porém, não coloque o peso da responsabilidade sobre elas. Toda escolha é individual.

33. O que duas semanas de mindfullness e quase dois meses de mestrado no exterior me ensinaram: planejar não é ruim, pelo contrário, é muito bom e fundamental. Mas viver o presente é ainda mais necessário.

domingo, 10 de dezembro de 2017

Pesos e medidas

Fundação Gilberto Freyre, em Recife (maio/2017)

William Shakespeare, uma ótima e conhecida (talvez bem batida, porém contextualizada neste caso) referência em citações, disse em sua peça Medida por Medida que "nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o que, com frequência, poderíamos ganhar, por simples medo de arriscar". Ousaria acrescentar uma livre interpretação ao escritor inglês: a de que a senhora dúvida não pode ser encarada apenas com o viés do medo. Caso contrário, não teríamos sobrevivido a anos de guerras, fomes, pestes, catástrofes, doenças e pragas. Ela esteve lá, presente em todos os críticos momentos. O simples desejo do "e se" certamente nos salvou de muito mais do que inundações, tornados, dores de cabeça e, até, de vidas solitárias.

Há uns quatro meses, enquanto elaborava em minha mente as primeiras ideias sobre um novo texto para o presente blog, cheguei à seguinte conclusão: é a certeza da dúvida que me faz escrever. Vista sob diversos ângulos, a dúvida se torna inimiga de muitos pela intensidade da relação com o seu usuário. Ela não demanda um tipo de amizade que se carrega o tempo todo, numa parceria fiel e, por vezes, acomodada. É daquelas cujo encontro tem que ser pontual, quando a situação for oportuna e exigir mais do que um espírito ilusório de liberdade. Em resumo, a dúvida existe, tem que existir. Entretanto, não deve ser usada além do necessário, sob o risco de se tornar um medicamento cujo efeito, depois de uma ingestão constante e exagerada, não funciona no organismo.

Escudeiro fiel da dúvida, o medo estará pronto ao mais leve sopro da ocasião. Ele não precisa estar a postos, mas é um sentinela obediente a quem quiser chamá-lo. Acompanha cada passo, cada respiração, cada gota de tristeza, angústia, raiva ou desespero da companhia que o convoca. Injustamente, é tratado com desonra pela maioria das pessoas, sobretudo por aquelas que mais paradoxalmente receiam aproximar-se dele. Elas sabem que o medo não morde, mas deixa marcas cujo tempo, senhor de todas as histórias, pode não conseguir cicatrizar. Sua presença, logo, é das mais ojerizadas.

Estar alerta é significar-se em um contexto, dar voz a roteiros racionalizados, por vezes escondidos entre as pastas empoeiradas do armário interior. Viver em estado de alerta é perigosamente desconectar-se do senso de realidade e permitir-se, ou melhor, obrigar-se a se enclausurar em um mundo paralelo de emoções arriscadas e insanas, as quais muito pouco refletem o que de fato acontece ao redor do contexto imaginado. A redoma é de vidro fino. O martelo ao lado muitas vezes não é visualizado por conta do conforto causado pela autocomiseração. A esta, clamo redobrada atenção, pois que em tons de egoísmo lírico se disfarça de humildade mórbida. 

Malfadado é o caminho daquele que se liberta da dúvida e do medo pelo receio de se afeiçoar à autocomiseração. Sufocar-se com uma gota de busca pela liberdade não torna a própria vida um fardo mais suave a se carregar. Permitir-se o risco é, antes de tudo, suscitar reflexões, pesos e medidas, cumprimentar polidamente questões que podem indicar rotas cujo trajeto não teria sido calculado pela negação da incerteza. Oscilar faz parte da rotina do equilíbrio, como uma questão de complementaridade. Escolher entre o balanço ou a constância é como estar em uma dança. A depender da trilha sonora, da companhia, do objetivo e do contexto, haverá infinitas possibilidades e, entre elas, nenhuma será a única resposta para todas as demais. 

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Navegando em águas turbulentas


Na semana passada, foi divulgada uma pesquisa cujo resultado é não apenas alarmante como também desafiador. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, numa escala de 0 a 10, no Brasil, o apoio ao autoritarismo é de 8,1. Como uma das principais causas desse resultado surreal (quer dizer, seria mais surreal por esperarmos um índice alto ou por ele de fato existir?) está o medo da violência cotidiana. Apoiar posturas autoritárias, o apoio pelo medo, é a melhor saída? Nunca. A História está repleta de exemplos que endossam essa resposta.

Ouso dizer que a ideia de obedecer sem questionar, apenas seguindo o fluxo na levada de quem se rotula como "aquele que solucionará os problemas", remete ao nível mais alto do niilismo. Afinal de contas, se a maioria de nós prefere marchar como soldados rasos, prontos para dar a volta ao mundo sem pausa para comer ou ir ao banheiro, será que existe a consciência da margem do contrafluxo democrático para o qual está sendo manejado o leme?

Alguns poderiam contra-argumentar: "Não seria melhor, ou até mais produtivo, termos que nos preocupar menos em escolher os pormenores cotidianos? Até porque é só apertar um botão verde para escolher alguém que faça isso por nós de acordo com o que acreditamos que ele/ela conduzirá as decisões". Não seria, nem será. Não somos robôs programados a apertar parafusos e prontos para a troca de óleo periódica. Temos necessidades. Reclamamos. Desejamos. Protestamos. Essas características estão muito além de um controle externo teórica e falsamente delegado.

Em uma das imprescindíveis páginas de "Mulheres que correm com os lobos: Mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem", Clarissa Pinkola Estés endossa esse posicionamento social proativo, na página 178, ao afirmar que "quando uma vida é excessivamente controlada, cada vez há menos vida a controlar". Tal frase pode ser enxergada sob o viés da procura por uma vida menos programada (sobretudo para quem prefere adiantar cada passo), bem como sob o viés do controle externo. 

Décadas, séculos e milênios atrás, filósofos lutaram para nos libertar das amarras impostas pelo poder constituído de seres costumeiramente privilegiados, mesquinhos e gananciosos. Seria a hora de voltarmos a deixar que nos amarrem novamente para que haja a garantia de dias felizes? Desta vez, certamente, não usarão cordas, mas arames grossos, farpados e venenosos, para que certifiquem a sutileza da causa que há por trás de toda história para bois (e toda a fazenda) dormir. Nos embriagarão com suas já obsoletas práticas da imposição do medo para assegurar a preservação mercado e escatológica que é resultado direto do autoritarismo.

Portanto, numa era de modismos originários e endossados no ambiente virtual, conclamo a sua atenção para atentar ao navio no qual embarca. Não entre na fila porque "todos estão fazendo isso". Seja humano e use suas bagagens neurais para ponderar se a moda que escolheu endossar compactua com o discurso que habitualmente defende. A não ser que queira vestir o colete da hipocrisia. Mas lembre-se de que ele não vai te proteger das grandes tempestades. Especialmente as internas.

domingo, 3 de setembro de 2017

A descoberta da onipresença desejada

Cascais - Portugal (novembro/2016)
Ao fixar o olhar vívido no horizonte, enxerguei a Liberdade, a qual há tempos procurava. Convidei-a com um sorriso para um abraço honesto e ela prontamente me estendeu as largas mãos, afagou meus cachos, aqueceu meu peito e compartilhou comigo o balanço de sua respiração profunda e vital.

Para desfrutar por mais tempo de sua prazerosa companhia, ofereci-lhe meus desejos, e ela, os seus ouvidos e olhos atentos a cada detalhe. Em seu globo ocular, enxerguei tons de empatia jamais vistos. No fim de minha narrativa, ela desenhou em seus lábios um risco de entusiamo e de esperança. 

A presença daquela figura ilustre e tão reiteradamente mal-interpretada me remetia instantaneamente ao tempo em que contar as estrelas no céu, aconchegada pelo vento carinhosamente gélido da noite e acompanhada do brilho da Lua, era um ritual cotidiano e predestinado. 

Foi então que me dei conta de que ela não precisaria se afastar de meus extensos relatos e nem de deixar de papear silenciosamente comigo, usando tão adequadamente como ferramenta a sua transparência existencial. Aquela criatura era mais do que uma conquista da paisagem.

Descobri, ao toque de sua essência floral em meus sentidos, que a Liberdade era onipresente, eu apenas não a vislumbrara antes como extensão de meu ser por que não me permitira enxergar além do muro dos conflitos internos.

Quando finalmente o Sol se pôs na linha do horizonte, sentamos lado a lado, de braços dados e sorrisos embevecidos, com olhos ansiosamente marejados, para apreciarmos juntas a recém-descoberta. Então, contamos estrelas, aconchegadas pelo vento carinhosamente gélido da noite, sob o olhar atento e (posso jurar que ainda mais radiante) da Lua.

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

O dia em que a estrela voltou a ser humana

Parc Floral de Paris - França (março/2012)
Certa feita, uma estrela abandonou o seu lugar ao pé do manto enluarado porque queria poder viver a realidade que admirava à distância há muitos milênios. Brilhava de emoção pela beleza da possibilidade de sentir nas papilas, na derme, nos olhos, no peito, na garganta, no pulmão e nos músculos faciais o que a fazia querer preservar apenas a lembrança de eras pregressas. Sim, aquela não era a sua primeira existência, permanecera daquela forma unicamente como um modo de se proteger daquilo que mais evitava: os extintores de luz.

Lembrara, algumas parcas vezes, em flashs de memória propositadamente enfraquecida, que a personagem originária era alguém de nome, carne e osso. E nessa composição havia marcas que a faziam querer esquecer o que era ser, pensar e pesar aquilo que tinha gosto amargo de ordem velada. Não bastava ter nome e carne se o osso pesava e ocupava mais espaço do que sua estrutura poderia carregar. 

Prestes a ignorar qualquer condução externa de prece de paz, e antes de explodir em pedaços afiados de cataclismo emocional, tivera a coragem (ou a fraqueza?) de se autoproteger e de se lançar rumo ao oceano onde apenas telescópios e atentos olhos nus poderiam enxergar a sua nova composição do ser. E como aquele lugar era especial, espacial, numa graciosa brincadeira que ia muito além dos vocábulos. Sua nova posição não apenas possibilitara livrar-se dos pesados ossos como também lhe fizera o favor de lhe apresentar cenários estonteantes que lhe faziam esquecer do que estava querendo se poupar.

Foi então que o medo de outrora chegou-lhe em um embrulho enfeitiçado, enviado por um dos deuses daquele distinto olimpo (e qual deles seria? Até hoje, não sabe e prefere silenciar as tentativas da descoberta). Como um anexo daquela oferenda, encontrou pequenas peças de um quebra-cabeça menor do que as pontas de sua composição. A curiosidade levantou a voz, suspendeu cada uma das peças e vestiu o manto da satisfação ao chegar à conclusão simbólica do presente: formara traços da realidade que malfadara. 

Com olhar nada preguiçoso, ergueu todo o seu corpo e viu que sua luz interna piscava incessantemente. Não desejava mais pesar como antes. Aqueles ossos não lhe pertenciam mais e enterrara-os tão bem em uma estrada de chão batido pela qual passara antes de encontrar em si as asas necessárias para se separar daquele nada remanso caminho. Então, por que o sentimento da dúvida brotara? Duvidava da capacidade de se arrepender ou da capacidade de querer retornar àquilo do qual tão veementemente quisera se afastar? O vislumbre da noite que lhe acompanhara durante os milênios mais tranquilos que tivera indubitavelmente afagavam a sua decisão de ali permanecer. Mas e quanto ao vislumbre do Sol? 

Foi durante aquele jogo de indecisões que, subitamente, começara a ser lembrada, pelo restinho das entranhas que pertencera à criatura anterior, do quanto sentia falta de poder experimentar novas aventuras e guiar-se quase que perdidamente rumo a uma nova direção. O gelo interno da novidade a suscitava ondas de ansiedade que pesavam desequilibradamente em seu ventre. Aquilo seria bom? E quanto daquele peso poderia ocupar o espaço que abandonara no deserto da certeza? Ninguém poderia esclarecer as dúvidas. Ninguém além de Chronos. E ele não era de conversar com palavras, mas apenas de apontar reflexos de projeções internas, para frente, para o lado ou para trás. Ah, como gostaria que aquele deus pudesse abandonar seus costumeiros protocolos e fizesse um favor àquela perdida criatura! Mas ele não saíra de seu posto e mantivera a obrigação de sua tarefa exatamente como tinha de ser.

A estrela, despertando de um transe compreensivelmente finito, desprendeu-se do seu altar. Admirou pela última vez as companhias e os cenários que a fizeram ali almejar, formou-se em tons e cores de mulher e pegou a estrada para a qual havia de rumar. Foi quando cochichou para si mesma que não poderia prever o que viria, mas certamente reconhecia a importância dos passos que dava. Pois, afinal, aquilo era o presente. O presente real, ou o milhares de vezes nada simples, real.

domingo, 27 de agosto de 2017

De quando a Srtª Racioemocional perdeu-se para se reencontrar

Créteil - França (novembro/2015)
Em um ímpeto aparentemente seguro, a Srtª Racioemocional sentou-se defronte ao computador em polvorosa por saber que sua mente inquieta produziria algo dentro de instantes. Assim que o cursor começou a piscar na tela, o turbilhão de pensamentos se dissipou, fugiu em disparada, para um lugar provavelmente seguro. Ao se dar conta disso, sua coluna a fez curvar para frente, os ombros caíram para baixo, a expiração empurrou seu centro de gravidade para o meio e as pálpebras se movimentaram em ritmo mais lento.

Inquieta com a possibilidade de não escrever, quando tanto o desejava, ela começa a maquinar em suas engrenagens a ideia de uma construção que, de repente, reportasse a sua situação impeditiva. Uma tentativa de pôr a máquina encefálica para funcionar ou uma maneira de suprir a inevitabilidade de escrever? E nessa função metalinguística seguiu saciando o desejo da conquista impressa das palavras.

"Música!", pensou rapidamente. "Preciso de música!", bradou veementemente. Um jukebox veio ao seu encontro imaginativo e se mostrou um tanto quanto conflitivo. Afinal, como escolher uma entre tantas, recentes e antigas, para se inspirar a debulhar a fibra interna? Pedir-lhe para selecionar uma canção seria como requisitar-lhe uma eleição entre a alegria e a esperança. Assim, separadamente. 

Foi então que percebeu que a plataforma que escolhera lhe conduzira a uma opção mais atrativa e mais atual, sobre a qual havia pensado recentemente. Ela versa sobre amor e expectativas (ok, dois pontos bem óbvios para uma escritora pensar a respeito). E sobre frustrações (mais uma obviedade narrativa). A voz marcante e meio rouca da cantora em junção com a melodia não apenas despertam o interesse do canto da Srtª Racioemocional mas igualmente o retorno de uma de suas pautas que havia escapado há pouco. 

Então, eis que de repente ela se dá conta de que aquela ideia poderia lhe render mais parágrafos, mais caracteres e se estender por entre as nuvens mentais, trazendo de volta as outras ideias fugitivas. Entretanto, por que agora ela pensa em guardá-las para as próximas publicações? No fim das contas, não era exatamente esse o desejo quando firmara a sua longa estrutura na cadeira, preparou bem a almofada para lhe apoiar, encheu a garrafa de água, afastou alguns cachos da testa e respirou uma vez profundamente antes de começar a usar alguns dos seus 10 dedos para dar vida ao que estava, até então, pipocando em sua massa encefálica?

Não. Precisava reconhecer que naquele momento era suficiente projetar apenas os primeiros esboços do retorno mais frequente aos laços da escrita crônica. E ela reconhecia tanto essa suficiência que, antes que o fluxo do rio de inspirações em que navegava fizesse mais uma curva, a Srtª Racioemocional lançou a âncora (instrumento habitualmente não apreciado por ela), mergulhou os pés naquele pedaço de mangue criativo e virou-se para observar o caminho em que naquele breve momento percorrera. Foi então que sua coluna a fez curvar para frente, os ombros caíram para baixo, a expiração empurrou seu centro de gravidade para o meio e as pálpebras se movimentaram em ritmo mais lento. Só que, dessa vez, um sorriso a distraiu de um provável bloqueio criativo. E, ali, ela se viu em um cenário de uma singeleza feliz. 

sábado, 5 de agosto de 2017

À vida que não cabe em chips

Fundação Gilberto Freyre - Recife/PE (maio/2017)
Olhe para os seus bebês enquanto caminham a passos inseguros defronte a lojas em uma manhã em que o Sol encoraja as suas mãos a celebrarem cada pisada como mais uma nova conquista do ser que cresce em meio ao caos.

Com uma mão, segure uma das palmas amadas e balance a sua outra em ritmo que comemora o momento de carinho tão escasso em nossas vistas.

Partilhe comidas e memórias que não estejam dentro do alcance de seus aplicativos virtuais.

Tire fotos de paisagens simbólicas, sob sua ótica pessoal, e não as compartilhe por meio do seu 3G. Guarde-as para posterior momento de deleite pessoal, como em um singelo prazer secreto.

Ao chegar em casa, desconecte o Wi-Fi do seu celular e permita-se ser mais humano e menos digital, mais vívido e menos curtido.

Dê um match na sua vida, like it or not, para rememorar que sua existência não depende de emoticons ou joinhas em bits para ser mais crível.

É mister criarmos mais coexistências tradicionais, onde não existem telas que direcionem nosso modo de vestir, comer, falar ou, até, (des)gostar. O risco em desenvolvermos uma geração de órfãos de humanidade existe e ele só tende a aumentar.